quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

JURISDIÇÃO – CONSIDERAÇÕES GERAIS

A jurisdição – palavra que tem sua origem na composição das expressões jus, juris (direito) e dictio, dictionis (ação de dizer) – surgiu da necessidade jurídica de se impedir que a prática temerária da autodefesa, por parte de indivíduos que se vissem envolvidos em um conflito, levasse a sociedade à desordem oriunda da inevitável parcialidade da justiça feita com as próprias mãos.
O Estado chamou para si o dever de manter estável o equilíbrio da sociedade e, para tanto, em substituição às partes, incumbiu-se da tarefa de administrar a justiça, isto é, de dar a cada um o que é seu, garantindo, por meio do devido processo legal, uma solução imparcial e ponderada, de caráter imperativo, aos conflitos interindividuais.
Reconhecendo a necessidade de um provimento desinteressado e imparcial, o Estado, mesmo sendo o titular do direito de punir – detentor da pretensão punitiva - autolimitou seu poder repressivo atribuindo aos chamados órgãos jurisdicionais a função de buscar a pacificação de contendas, impondo, soberanamente, a norma que, por força do ordenamento jurídico vigente, deverá regular o caso concreto. O Estado, então, por intermédio do Poder Judiciário, busca, utilizando-se do processo, investigar qual dos litigantes tem razão, aplicando, ao final, a lei ao caso litigioso em comento. [1]
Eis aí o conceito de jurisdição.
Cintra, Grinover e Dinamarco a definem como sendo "uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça". [2] Em outras palavras, apregoam os autores que "através do exercício da função jurisdicional, o que busca o Estado é fazer com que se atinjam, em cada caso concreto, os objetivos das normas de direito substancial". [3]
Nesse mesmo sentido, Tourinho Filho conceitua jurisdição como "aquela função do Estado consistente em fazer atuar, pelos órgãos jurisdicionais, que são os juízes e Tribunais, o direito objetivo a um caso concreto, obtendo-se a justa composição da lide". [4] Reforça ainda que "esse poder de aplicar o direito objetivo aos casos concretos, por meio do processo, e por um órgão desinteressado, imparcial e independente, surgiu, inegavelmente, como impostergável necessidade jurídica à própria sobrevivência do Estado". [5]
Importa frisar que o fato de ser a jurisdição uma emanação da própria soberania estatal originou o artigo 345 do Código Penal, onde está estabelecido como crime o fazer justiça com as próprias mãos, mesmo se tratando de pretensão legítima.
Cintra, Grinover e Dinamarco lembram que a jurisdição é, ao mesmo tempo, poder, função e atividade. Como poder, é uma emanação da soberania nacional. Como função, é a incumbência afeta ao órgão jurisdicional de, por meio do processo, aplicar a lei aos casos concretos. Como atividade, é o complexo de atos do juiz no processo, tendentes a dar a cada um o que é seu. [6]
Observe-se, contudo, que não só o Poder Judiciário exerce a função jurisdicional. Por esse motivo, Scarance Fernandes [7] e Mirabete [8] lecionam que a jurisdição, quanto à função, pode ser ordinária ou comum e extraordinária ou especial, conforme o órgão que a exerça ser pertencente (ordinária) ou não (extraordinária) ao Poder Judiciário. Um exemplo clássico de jurisdição extraordinária é aquela exercida pelo Senado Federal, nos termos do artigo 52, inciso I e II, da Constituição Federal.

A doutrina costuma atribuir à jurisdição algumas características que lhe são inerentes. Para Cintra, Grinover e Dinamarco, a existência de uma lide, a inércia dos órgãos jurisdicionais (princípio da inércia) e a suscetibilidade de os atos jurisdicionais tornarem-se imutáveis (princípio da definitividade) são as três características básicas da jurisdição. [9] Tourinho Filho, por sua vez, acresce às características citadas pelos sobreditos doutrinadores a substitutividade, que ocorre quando o juiz, no exercício da atividade jurisdicional, como terceiro revestido de desinteresse e imparcialidade, substitui os interessados na aplicação da justiça ao caso concreto, privando-os de, pelas próprias mãos, buscarem a satisfação de suas pretensões.
Mirabete, ao dissertar sobre as características da jurisdição, apresenta algumas outras que chamou de formais indeclináveis, necessárias à realização eficiente do objetivo jurisdicional de aplicar a lei ao caso concreto. São elas: um órgão adequado – o juiz – colocado em posição de independência para exercer imparcialmente a atividade jurisdicional; o contraditório regular, que permitirá às partes duelar com paridade de armas; e um procedimento preestabelecido segundo regras de garantam o livre desenvolvimento do direito e das faculdades das partes, visando a assegurar a justa solução do conflito. [10]
Compõe-se a jurisdição de alguns elementos a serem observados com vistas a se chegar à final aplicação do direito material ao conflito. Na ordem, são eles: a notio ou cognitio (poder atribuído aos órgãos jurisdicionais de conhecer os litígios e prover à regularidade do processo), a vocatio (faculdade de fazer comparecer em juízo todo aquele cuja presença é necessária ao regular desenvolvimento do processo), a coertio (possibilidade de aplicar medidas de coação processual para garantir a função jurisdicional), o juditium (o direito de julgar e pronunciar a sentença) e a executio (poder de fazer cumprir a sentença). [11]
Muito embora a jurisdição, como expressão do poder estatal soberano, seja una e indivisível, didaticamente costuma-se classificá-la quanto à sua graduação ou categoria (podendo ser inferior – correspondente à primeira instância – ou superior – correspondente à segunda instância ou outros tribunais ad quem), quanto à matéria (penal, civil, eleitoral, trabalhista e militar), quanto ao organismo jurisdicional (estadual ou federal), quanto ao objeto (contenciosa – quando há litígio – ou voluntária – quando é homologatória da vontade das partes), quanto à função (ordinária ou comum – integrada pelos órgãos do Poder Judiciário – ou extraordinária ou especial – quando a função jurisdicional não é exercida por órgãos do Poder Judiciário), quanto à competência (plena – quando o juiz tem competência para decidir todos os casos – ou limitada - quando sua competência é restrita a certos casos) e outras distinções feitas em prol do melhor estudo e compreensão do instituto da jurisdição. [12]

PRINCÍPIO DA INVESTIDURA

O Estado, como pessoa jurídica de direito público, necessita de pessoas físicas para o exercício da função jurisdicional. Para que essas pessoas possam exercer a jurisdição, é preciso que estejam regularmente investidas no cargo de juiz e em pleno exercício, de acordo com o que prescreve a lei.
A pessoa não investida na autoridade de juiz não poderá desfrutar do poder de julgar. Conseqüentemente, estará impossibilitada de validamente desempenhar a função jurisdicional, sob pena de, se assim o fizer, serem declarados nulos o processo e a sentença, sem prejuízo de o pseudojuiz responder criminalmente pelo delito de usurpação de função pública, previsto no artigo 328 do Código Penal.
Apenas ao juiz, em pleno exercício, investido regularmente no cargo, segundo os ditames legais, caberá o exercício da função jurisdicional.
Cintra, Grinover e Dinamarco salientam que o juiz que já se aposentou não é mais juiz, razão pela qual não pode exercer a jurisdição, devendo passar os autos ao sucessor, consoante prescreve textualmente o artigo 132 do Código de Processo Civil. [13]

PRINCÍPIO DA INDECLINABILIDADE OU DA INAFASTABILIDADE

Consagrando expressamente o princípio da indeclinabilidade (ou da inafastabilidade, também chamado de princípio do controle jurisdicional por Cintra, Grinover e Dinamarco) [14], dispõe o artigo 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".
Desta forma, a Lei Maior garante o acesso ao Poder Judiciário a todos aqueles que tiverem seu direito violado ou ameaçado, não sendo possível o Estado-Juiz eximir-se de prover a tutela jurisdicional àqueles que o procurem para pedir uma solução baseada em uma pretensão amparada pelo direito. Conseqüentemente, salienta Tourinho Filho, "se a lei não pode impedir que o Judiciário aprecie qualquer lesão ou ameaça a direito, muito menos poderá o Juiz abster-se de apreciá-la, quando invocado". [15]
Em suma, apregoa o princípio da indeclinabilidade que o juiz não pode subtrair-se da função jurisdicional, sendo que, mesmo havendo lacuna ou obscuridade na lei, deverá proferir decisão (art. 126, CPC).

PRINCÍPIO DA INDELEGABILIDADE

Leciona Mirabete [16] que o princípio da indelegabilidade decorre do princípio da indeclinabilidade, anteriormente estudado. De fato, não pode o juiz delegar sua jurisdição a outro órgão, pois, se assim o fizesse, violaria, pela via oblíqua, o princípio da inafastabilidade e a garantia constitucionalmente assegurada do juiz natural ("ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" - artigo 5°, inciso LIII, CF/88).
Cintra, Grinover e Dinamarco afirmam que "o princípio da indelegabilidade é, em primeiro lugar, expresso através do princípio constitucional segundo o qual é vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições". [17] Continuam os insignes doutrinadores esclarecendo que "a Constituição Federal fixa o conteúdo das atribuições do Poder Judiciário e não pode a lei, nem pode muito menos alguma deliberação dos próprios membros deste, alterar a distribuição feita naquele nível jurídico-positivo superior". [18]
É importante notar, entretanto, que o princípio da indelegabilidade não é absoluto, pois admite exceções. O artigo 102, I, m, da CF/88, e os artigos 201 e 492 do Código de Processo Civil admitem que haja delegação nos casos de execução forçada pelo STF e também nas chamadas cartas de ordem (artigo 9°, §1°, da Lei n° 8.038/90 e regimentos internos do STF, STJ, TRFs e TJs).
Mirabete [19] e Frederico Marques [20] entendem que as cartas precatórias (arts. 222, 353, 174, IV, 177 e 230, do CPP) e as rogatórias (arts. 368, 369, 780 e seguintes, do CPP) constituem-se em outras exceções, legal e taxativamente previstas, ao princípio da indeclinabilidade. A contrario sensu, Cintra, Grinover, Dinamarco [21] e Tourinho Filho [22] afirmam que não se pode cogitar em delegação quanto à prática dos atos processuais inerentes às sobreditas cartas, tendo em vista que o juiz não pode delegar um poder que ele mesmo não tem, por ser incompetente.
Salientam os citados autores que é justamente esta a situação que ocorre nas cartas precatórias ou rogatórias, pois o juiz não tem poderes para exercer a atividade jurisdicional fora dos limites de sua comarca. O que ocorre, então, nestes casos, é mera cooperação entre o juiz deprecante e o deprecado, onde aquele, impedido que está de praticar atos processuais fora de sua comarca, por força da limitação territorial de poderes, solicita a este que pratique os atos necessários, exercendo, destarte, sua própria competência nos limites da comarca onde atua.

PRINCÍPIO DA IMPRORROGABILIDADE

Igualmente conhecido como princípio da aderência ao território, o princípio da improrrogabilidade veda ao juiz o exercício da função jurisdicional fora dos limites delineados pela lei. Sob este prisma, não poderá o crime de competência de um juiz ser julgado por outro, mesmo que haja anuência expressa das partes.
Tourinho Filho, ensinando sobre a impossibilidade de um juiz invadir a jurisdição de outro, esclarece que "não é lícito, mesmo mediante acordo dos interessados, submeter uma causa à apreciação de autoridade que não tenha, para isto, jurisdição e competência próprias". [23]
O princípio da improrrogabilidade admite exceções. Acerca do assunto, Mirabete, para o qual tal princípio decorre do da indeclinabilidade, [24] esclarece que, por vezes, é possível que haja prorrogação de competência, como nos casos de conexão ou continência (arts. 76, 77 e 79, CPP), na hipótese prevista no art. 74, §2, in fine, do CPP, na circunstância quando é oposta e admitida a exceção da verdade (art. 85, CPP) e no caso de desaforamento (art. 424, CPP).

PRINCÍPIOS DA INICIATIVA DAS PARTES E DA INÉRCIA

Em termos práticos, os princípios da iniciativa das partes e da inércia se equivalem, diferindo-se, doutrinariamente, pelo fato de o primeiro ser um preceito do Processo Penal e o segundo, da jurisdição.
Cristalizados nos aforismos nemo judex sine actore (não há juiz sem autor) e ne procedat judex ex officio (o juiz não pode proceder – dar início ao processo - sem a provocação da parte), tais princípios consubstanciam a índole inerte dos órgãos jurisdicionais, que somente poderão aplicar a lei ao caso concreto se devidamente provocados pela parte interessada em face da existência de uma pretensão resistida ou insatisfeita amparada pelo ordenamento jurídico. Esta provocação é feita por meio da ação, onde se invoca a tutela do Estado-Juiz a fim de que haja a prestação jurisdicional.
Cintra, Grinover e Dinamarco justificam o princípio da inércia explicando que "o exercício espontâneo da atividade jurisdicional acabaria sendo contraproducente, pois a finalidade que informa toda a atividade jurídica do Estado é a pacificação social e isso viria em muitos a casos a fomentar conflitos e discórdias, lançando desavenças onde elas não existiam antes". [25]
Os órgãos jurisdicionais, sabemos, devem ser desinteressados e imparciais, características inerentes à própria existência da jurisdição. Visando a resguardar a imparcialidade na solução do conflito, melhor é deixar que o Estado só intervenha quando provocado por meio da ação, pois "a experiência ensina que quando o próprio juiz toma a iniciativa do processo, ele se liga psicologicamente de tal maneira à idéia contida no ato de iniciativa, que dificilmente teria condições de julgar imparcialmente". [26]
Ademais, ensina Tourinho Filho que se ao próprio juiz coubesse a provocação da tutela jurisdicional, estaria ele a pedir providências a ele mesmo, numa clara ocorrência de jurisdição sem ação, como se tem no processo do tipo inquisitório, [27] não acolhido por nós em sede processual.
A inércia a qual os órgãos jurisdicionais estão submetidos, por força de dispositivos como os artigos 2° do CPC e 24 do CPP, é vencida, portanto, pela provocação das partes que, insatisfeitas, motivam a instauração de um processo a fim de afastarem a resistência a sua pretensão.
Lecionando sobre a importância do princípio da inércia, Tourinho Filho lembra que "mesmo na hipótese de o órgão do Ministério Público, infundadamente, requerer o arquivamento de um inquérito policial, o máximo que o Juiz pode fazer é remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça, nos termos do art. 28 do CPP". O que significa, continua o autor, "que nem por via oblíqua pode ser quebrado o princípio do nemo judex sine actore". [28]
Como não poderia deixar de ser, o princípio da inércia (também chamado por Mirabete de princípio da titularidade) [29] comporta exceções. Assim, por exemplo, pode o juiz, ex officio: declarar a falência de um comerciante no curso de um processo de concordata, se verificar a falta de algum requisito para esta (art. 162, Lei de Falências); instaurar a execução trabalhista (art. 878, CLT); conceder ordem de habeas corpus (art. 654, §2°, CPP); e decretar prisão preventiva.
Por fim, saliente-se que, antes da Constituição Federal de 1988, nos casos de contravenções e de homicídio e lesão corporal culposos, quando conhecida a autoria nos primeiros 15 (quinze) dias (art. 1°, Lei n° 4.611/65), era permitido às autoridades judiciária e policial a prática do ato de iniciativa. Hoje, entretanto, por força do disposto no artigo 129, I, da Lei Maior, estas exceções não mais subsistem. [30]

PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO

Estabelece o princípio da correlação que há necessidade imperiosa da correspondência entre a condenação e a imputação, ou seja, o fato descrito na peça inaugural de um processo – queixa ou denúncia – deve guardar estrita relação com o fato constante na sentença pelo qual o réu é condenado.
O princípio da correlação, também chamado de princípio da relatividade [31] ou da congruência da condenação com a imputação ou ainda da correspondência entre o objeto da ação e o objeto da sentença, [32] representa uma das mais relevantes garantias do direito de defesa, pois assegura ao réu a certeza de que não poderá ser condenado sem que tenha tido oportunidade de, previa e pormenorizadamente, ter ciência dos fatos criminosos que lhe são imputados, podendo, assim, defender-se amplamente da acusação.
Nesse contexto, assevera Tourinho Filho que, in verbis,
"iniciada a ação, quer no cível, quer no penal, fixam-se os contornos da res in judicio deducta, de sorte que o Juiz deve pronunciar-se sobre aquilo que lhe foi pedido, que foi exposto na inicial pela parte. Daí se segue que ao Juiz não se permite pronunciar-se, senão sobre o pedido e nos limites do pedido do autor e sobre as exceções e nos limites das exceções deduzidas pelo réu. […] isto é, o Juiz não pode dar mais do que foi pedido, não pode decidir sobre o que não foi solicitado". [33]
Mirabete, por sua vez, esclarece que
"não pode haver julgamento extra ou ultra petita (ne procedat judex ultra petitum et extra petitum). A acusação determina a amplitude e conteúdo da prestação jurisdicional, pelo que o juiz criminal não pode decidir além e fora do pedido em que o órgão da acusação deduz a pretensão punitiva. Os fatos descritos na denúncia ou queixa delimitam o campo de atuação do poder jurisdicional". [34]
Alerta ainda o douto jurista que na hipótese de haver distorção entre a imputação e a sentença, sem observância dos dispositivos legais pertinentes à matéria, o direito de defesa do réu poderá estar sendo violado, o que, se comprovado, acarretará a nulidade da decisão (RT 526/396, 565/383, JTACrSP 76/271, RJDTACrim 17/15-25). [35]
Não obstante estar o juiz, de certo modo, adstrito ao requisitório da acusação, não podendo sua sentença afastar-se dos fatos constantes na peça acusatória inicial, cumpre observar a vigência, no Processo Penal, do também princípio da livre dicção do direito (jura novit curia), onde resta consubstanciado que cabe ao juiz conhecer e cuidar do direito (narra mihi factum dabo tibi jus). Assim, o réu não deve defender-se da capitulação dada ao crime pelo Ministério Público ou pelo ofendido ou seu representante legal na denúncia ou na queixa, respectivamente, mas da descrição fática nela constante, ou seja, dos fatos nela narrados.
Nesse sentido, decidiu o STF que "o réu defende-se do fato que lhe é imputado na denúncia ou na queixa e não da classificação jurídica feita pelo MP, ou querelante" (HC 61.617-8-SP, j. 04.05.1984) e "o réu se defende do crime descrito na denúncia e não da capitulação nela constante" (HC 63.587-3-RS, j. 14.02.1986). [36]
Na esteira desses pensamentos, faz-se necessária a breve análise dos artigos 383 e 384 do Código de Processo Penal.
O artigo 383 prescreve o instituto do emendatio libelli, segundo o qual, "o juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave". Considerando que a adequação feita pelo Promotor ou querelante é meramente provisória e que os fatos narrados implicita ou explicitamente na peça acusatória são os mesmos analisados e julgados pelo juiz, não há ofensa ao princípio da correlação, pois o que ocorre é simples corrigenda da classificação contida na peça inaugural.
Neste caso, por não ter havido alteração do fato a respeito do qual foi exercido o direito de defesa, pode o juiz alterar a tipificação apresentada pela acusação e até mesmo condenar com pena mais grave, sem que haja necessidade de qualquer providência prévia. [37]
Situação diversa ocorre, entretanto, nas hipóteses do artigo 384, caput e parágrafo único, onde, durante o processo, surgem fatos e/ou circunstâncias elementares não contidos, expressa ou implicitamente, na peça acusatória (mutatio libelli). Por essa razão, a sentença não pode ser proferida de imediato, sob pena de nulidade por ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
A fim de poder proferir sentença válida, atendendo aos princípios norteadores do Processo Penal, deverá o juiz adotar uma das seguintes providências: se os novos fatos e/ou circunstâncias puderem ensejar a aplicação de pena idêntica ou menos grave à que seria imposta pela capitulação inicial, os autos serão baixados à defesa para que, no prazo de 08 (oito) dias, se manifeste e, se o desejar, produza provas, podendo ser ouvidas até 03 (três) testemunhas (art. 384, caput, CPP); se os novos fatos e/ou circunstâncias importarem em pena mais grave, o juiz baixará os autos à acusação para que adite a denúncia ou a queixa, abrindo-se um prazo de 03 (três) dias à defesa para que se, querendo, ofereça provas, arrolando até 03 (três) testemunhas.
Maiores considerações sobre o princípio da correlação entre sentença e imputação, bem como questões outras acerca dos institutos da emendatio libelli e da mutatio libelli serão discutidas com mais detalhes no Resumo do Tema 9 (Sentença. Correlação entre acusação e sentença. Coisa julgada. Limites objetivos e subjetivos. Efeitos civis da sentença penal. Aplicação dos artigos 383 e 384, do CPP, e a ineficácia dos atos processuais).

PRINCÍPIO DA DEFINITIVIDADE

Em que pese estar a definitividade citada como princípio, boa parte dos doutrinadores a considera como uma característica dos atos jurisdicionais, [38] que se revestem da possibilidade de a sentença judicial tornar-se imutável a partir da ocorrência do fenômeno da coisa julgada.
Entenda-se coisa julgada, nas palavras de Cintra, Grinover e Dinamarco, como sendo a "imutabilidade dos efeitos de uma sentença, em virtude da qual nem as partes podem repropor a mesma demanda em juízo ou comporta-se de modo diferente daquele preceituado, nem os juízes podem voltar a decidir a respeito, nem o próprio legislador pode emitir preceitos que contrariem, para as partes, o que já ficou definitivamente julgado". [39]
De fato, encerrado o desenvolvimento legal de um processo, a manifestação judicial consubstanciada na sentença adquire um caráter de imutabilidade, não cabendo revisão por qualquer outro poder, ao contrário, por exemplo, das decisões administrativas que, quanto à sua legalidade, são sempre passíveis de revisão pelo Poder Judiciário. [40]
Cintra, Grinover e Dinamarco lecionam, com bastante clareza, que, "no Estado de Direito só os atos jurisdicionais podem chegar a esse ponto de imutabilidade, não sucedendo o mesmo com os administrativos ou legislativos. Em outras palavras, um conflito interindividual só se considera solucionado para sempre, sem que se possa volta a discuti-lo, depois que tiver sido apreciado e julgado pelos órgãos jurisdicionais: a última palavra cabe ao Poder Judiciário". [41]
Por assim ser, Tourinho Filho alerta que há entendimento no sentido de que o Senado Federal, mesmo face à competência que lhe foi atribuída pelo artigo 52, incisos I e II, da Constituição Federal de 1988, não exerce função jurisdicional, posto que suas decisões não têm o caráter da definitividade. [42]

PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL

O princípio do juiz natural ou juiz constitucional, também chamado de princípio do juiz competente, no direito espanhol, e princípio do juiz legal, no direito alemão, originou-se, historicamente, no ordenamento anglo-saxão, desdobrando-se, a posteriori, nos constitucionalismos norte-americano e francês. Entre nós, o referido princípio inseriu-se deste o início das Constituições.
Trata-se de princípio que garante ao cidadão o direito de não ser subtraído de seu Juiz Constitucional ou Natural, aquele pré-constituído por lei para exercer validamente a função jurisdicional.
Assegura expressamente a Constituição Federal que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" (artigo 5°, inciso LIII) e que "não haverá juízo ou tribunal de exceção" (artigo 5°, inciso XXXVII). Outrossim, determina a Lei Maior que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito" (artigo 5°, XXXV).
Dentro deste contexto, buscam os dispositivos constitucionais impedir que pessoas estranhas ao organismo judiciário exerçam funções que lhe são específicas (salvo, é claro, quando houver autorização da própria Constituição Federal nesse sentido, p.ex., Senado – artigo 52, incisos I e II) e proscrever os tribunais de exceção, aqueles criados post factum. Assim, nenhum órgão, por mais importante que seja, se não tiver o poder de julgar assentado na Constituição Federal não poderá exercer a jurisdição. Tem-se, salienta a doutrina, a mais alta expressão dos princípios fundamentais da administração da justiça.

Fernandes Scarance afirma que a dúplice garantia assegurada pelo cogitado princípio – proibição de tribunais extraordinários e de subtração da causa ao tribunal competente, desdobra-se em três regras de proteção: "a) só podem exercer jurisdição os órgãos instituídos pela Constituição Federal; b) ninguém pode ser julgado por órgão instituído após o fato; c) entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja". [43]
Acentua Vicente Greco Filho que "não se admite a escolha de magistrado para determinado caso, nem a exclusão ou afastamento do magistrado competente; quando ocorre determinado fato, as regras de competência já apontam o juízo adequado, utilizando-se, até, o sistema aleatório de sorteio para que não haja interferência na escolha". [44]
É bem verdade que há casos especialíssimos de deslocação da competência, como no caso previsto no artigo 424 do CPP (desaforamento no procedimento do tribunal do júri), entretanto, entende-se que, por estarem determinados pelo interesse público e da própria justiça, não ferem o princípio do juiz natural, pois o intuito é a busca do julgamento justo.
Grinover, Scarance e Gomes Filho, além de outros doutrinadores, defendem que com a garantia do juiz natural assegura-se a imparcialidade do órgão jurisdicional, não como atributo do juiz, mas como pressuposto de existência da própria atividade jurisdicional. Por isso, afirmam que sem o juiz natural não há jurisdição, pois a relação jurídica não pode nascer. [45]
Os mesmos estudiosos asseveram que além de o julgamento da causa ser de incumbência do juiz natural, é mister que perante este também seja instaurado e desenvolvido o processo, não sendo possível o aproveitamento dos atos instrutórios realizados por juiz constitucionalmente incompetente. [46] Neste diapasão, os artigos 108, §1°, e 567 do CPP devem ser relidos a fim de se adequarem à garantia do juiz natural, restringindo-se sua aplicação apenas aos casos de incompetência infraconstitucional. Em se tratando de juiz constitucionalmente incompetente, não pode haver aproveitamento dos atos, não-decisórios e decisórios, uma vez que o artigo 5°, inciso LIII, da Lei Maior refere-se à garantia de que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" (grifei).
De igual forma, também carece de releitura o artigo 564, I, do CPP, que dispõe ser caso de nulidade os atos praticados por juiz incompetente. Como já mencionado, a garantia do juiz natural é um pressuposto de existência da atividade jurisdicional. Sob este prisma, os atos praticados por juiz constitucionalmente incompetente são inexistentes e não nulos. Em decorrência disso, o processo e a sentença, eventualmente prolatada, são juridicamente inexistentes.
Questão interessante é saber se o réu, submetido a julgamento por juiz constitucionalmente incompetente, estaria sujeito a nova persecução penal sobre os mesmos fatos, uma vez considerando-se que a sentença prolatada seria inexistente e, como tal, não estaria tecnicamente suscetível à formação da coisa julgada.
Grinover, Scarance e Gomes Filho entendem que "o rigor técnico da ciência processual há de ceder perante os princípios maiores do favor rei e do favor libertatis, fazendo prevalecer o dogma do ne bis in idem, impedindo nova persecução penal a respeito do fato em tela". [47] Esclarecem os insignes estudiosos que, não obstante o princípio do ne bis in idem estar tecnicamente ligado ao fenômeno da coisa julgada e que juridicamente inexistente a sentença esta não poderia transitar em julgado, no terreno da persecução penal estão em jogos valores preciosos do indivíduo, como sua vida, sua liberdade, sua dignidade, e que, nesse particular, o ne bis in idem assume dimensão autônoma, impedindo nova persecução penal do réu pelos mesmos fatos já julgados. Observam os autores que a garantia do juiz natural é erigida em favor do réu e não em detrimento aos direitos deste.
Acerca dos chamados tribunais ou juízos de exceção, assim considerados aqueles criados após o fato a ser julgado, a proibição dos mesmos não abrange o impedimento da criação de justiça ou vara especializada, pois, nestes casos, não há criação de órgãos, mas simples atribuição de órgãos já inseridos na estrutura judiciária, fixada na Constituição Federal, para julgamento de matérias específicas, objetivando a melhoria na aplicação da norma substancial.
Cintra, Grinover e Dinamarco salientam a necessidade de se distinguir tribunais de exceção de justiças especiais, como a Militar, a Eleitoral e a Trabalhista, lembrando que estas são instituídas pela Lei Maior, com anterioridade à prática dos fatos a serem por elas apreciados e, portanto, não constituem ofensa ao princípio do juiz natural. [48]
Inclui-se na proibição dos tribunais de exceção os foros privilegiados, criados como favor pessoal, mas exclui-se as hipóteses de competência por prerrogativa de função, onde é levada em conta a função exercida pelo réu e não a sua pessoa, inexistindo, neste caso, favorecimento ou discriminação.